quinta-feira, 19 de maio de 2011

CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA (Parte 6)

Eu, creio. Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que eu creio - o Capitão a Ela há de enviar.
Quarta-feira, 29 de abril: A quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer às naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos.
Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pêgas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos.
Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e tratar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite.
E assim não houve mais este dia que para escrever seja.
Quinta-feira, 30 de abril: A quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo os Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz.
Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos no batei e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cêra vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha tão contente com ela, como se tivera uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.
Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade.
Andavam todos tão dispostos, tão bem feitos e garantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis.
Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água, que a nosso parecer era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água.
Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homem as não pode contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.
Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, unto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nós puséssemos todos em joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E, imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nós trouxe, creio que não foi sem causa.
Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prezerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.
Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que acostumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e fruitos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.
Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noute às naus, senão quatro ou cinco, a saber; o Capitão-mor, dois: Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem.
Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa e com ele um seu irmão; e foram esta noute mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.
Sexta-feira, 1 de maio: E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, em nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.
Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando ali nisso, vieram bem cento e cinqüenta ou mais.

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